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Opinião – Chamamento Público: Por que deve ser com infraestrutura privada

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    abrafamail
  • 2 de out.
  • 6 min de leitura

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A Lei nº 14.273/2021 trouxe um novo paradigma regulatório no setor ferroviário brasileiro,

ao instituir o regime de autorização ferroviária. Diferentemente da concessão tradicional, a autorização foi concebida como um instrumento de ação e exploração privada, caracterizado pela liberdade de iniciativa, pelo risco integral do investidor e pela ausência de reversão obrigatória dos ativos ao final do contrato.


Entretanto, a utilização do chamamento público para o reaproveitamento de trechos ociosos ou não operacionais da malha federal levanta questões relevantes sobre a natureza dessa outorga. O ponto central é definir se tal procedimento deveria resultar em uma autorização baseada em infraestrutura pública – com utilização de bens da União cedidos – como atualmente proposto e em processo de desenvolvimento, ou se deveria evoluir para uma autorização vinculada à futura infraestrutura privada, por meio de alienação.


Confesso que a perspectiva de uma autorização apoiada em ativos públicos despertou minha reflexão, pois amplia o leque de possibilidades dentro do modelo regulatório. Entende-se que, para preservar a coerência regulatória e garantir incentivos adequados ao investimento, o chamamento público deveria manter a essência das autorizações ferroviárias greenfield, ou seja, assegurar a integridade plena da autorização.


Caso contrário, o chamamento público corre o risco de se aproximar de um modelo híbrido, mais próximo de uma concessão “soft”, simplesmente pela presença de infraestrutura pública. O art. 8º da lei ferroviária trata outorga de autorização como exploração indireta de ferrovias em regime privado enquanto a outorga de concessão está em regime público. 

No art. 21 da referida lei, tem-se que, para “constituir infraestrutura ferroviária a ser operada sob regime privado, o poder público pode alienar, ceder ou arrendar à operadora ferroviária autorizatária bens de sua propriedade, conforme a regulamentação”.


Percebe-se que o legislador, ao vincular o chamamento público ao regime de autorização, buscou simplificar o processo e viabilizar a reativação de ramais e extensões ferroviárias pelo setor privado, reduzindo o fardo regulatório e ampliando a liberdade empresarial (tarifação livre, possibilidade de operação própria ou por terceiros, atuação orientada pelo interesse econômico).


Entretanto, ao admitir a cessão ou arrendamento de trechos por parte do poder público, como vem ocorrendo, cria-se um precedente inusitado: a figura de uma autorização ferroviária híbrida, que se distancia do modelo “puro sangue” de autorização privada. Ou seja, é uma autorização em regime privado com bem público, no qual o bem público tem mais sinergia com um regime público e que se interliga a uma concessão.

Até o momento, a alternativa da alienação de bens públicos não está contemplada nos chamamentos públicos. Essa opção, além de representar uma nova fonte de arrecadação ao governo, permitiria a efetiva transferência da infraestrutura (na maioria dos casos sendo precária) para o investidor, que, de toda forma, já assumirá integralmente os custos e o capex necessários para reabilitar os trechos não operacionais, embora para esse modelo há a possibilidade de aporte público em bens públicos e que não ocorre nas autorizações greenfield conforme preconiza o art. 21 da Lei 4.320/1964 sobre transferências de capital: “A Lei de Orçamento não consignará auxílio para investimentos que se devam incorporar ao patrimônio das empresas privadas de fins lucrativos”.

Acerca da essência jurídica e regulatória, a autorização ferroviária é um título privado, celebrado por contrato de adesão, onde o investimento é integralmente privado; o risco de demanda e operação recai exclusivamente do autorizatário; não há garantia de equilíbrio econômico-financeiro; e os bens são privados, não estando sujeitos à reversão compulsória.


Ao admitir que o chamamento público resulte em operação sobre infraestrutura pública, rompe-se com a lógica autorizatária, aproximando-o de uma concessão, cujo traço distintivo é justamente o uso de bem público sob reversibilidade.

Entre as situações de autorização sobre infraestrutura pública, podemos trazer a incoerência regulatória no qual misturar regimes pode gerar insegurança jurídica além da regulatória. Concessão é o instrumento mais adequado para a exploração de infraestrutura pública. A autorização deve ser reservada a projetos privados – greenfield ou adquiridos. Essa clareza conceitual é essencial para investidores e para o próprio papel do Estado.


Também temos a questão dos incentivos distorcidos, pelo qual o autorizatário que opera infraestrutura pública tem a vantagem de assumir menor capex inicial, pois herda ativo já implantado, mas poderá ter menor incentivo à manutenção de longo prazo, visto que não detém efetivamente a propriedade; e pode aguardar renegociações futuras, reduzindo o comprometimento com eficiência.


Já no modelo de infraestrutura privada ou aquisição da infraestrutura, o investidor tem “skin in the game”, pois depende do valor patrimonial do ativo que construiu ou adquiriu.

Acerca do risco de concorrência desleal, permitir autorizações sobre infraestrutura pública cria assimetria com concessionárias, que pagam outorga e arcam com reversibilidade; e os autorizatários greenfield, que assumem risco integral e maiores custos. Essa distorção compromete a isonomia e pode inibir investimentos privados.


No que tange à segurança jurídica reduzida, o uso de infraestrutura pública implica risco de reversão unilateral pelo poder concedente; podem ocorrer interferências políticas na definição de tarifas e acesso; e instabilidade regulatória, pois isso afugenta capital privado de longo prazo, especialmente internacional.


Tratando da atuação de órgãos governamentais, em uma autorização ferroviária que utiliza infraestrutura pública, com bens da União cedidos, deverá ter maior participação da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), TCU (Tribunal de Contas da União) e demais órgãos de controle do que uma autorização greenfield, porque há ativos públicos envolvidos. Trazendo fatos futuros ao presente, poderá ocorrer a atuação da ANTT como a exigência da Declaração de Rede com a divulgação anual dos trechos em operação, tráfego previsto, capacidade disponível e ociosa, permitindo à agência monitorar saturação e evitar conflitos entre operadores; e a regulação econômica onde se visa garantir que a utilização de infraestrutura pública não distorça o mercado e respeite princípios de eficiência e não discriminação. O TCU poderá ter participação no processo mediante a análise de riscos e mitigação, verificando se a utilização de infraestrutura pública não gera desequilíbrios regulatórios ou favorece indevidamente determinados operadores; e controle posterior, onde, após a outorga de autorização ou contrato de adesão do chamamento público, pode auditar o contrato e a execução da autorização, garantindo transparência no uso de ativos públicos.


Se a União deseja reativar trechos ociosos, a solução coerente não é ceder uso público sob autorização, mas alienar a faixa de domínio (quando juridicamente viável); ou constituir direitos reais de uso alienáveis e perpétuos (Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, servidão administrativa), garantindo ao autorizatário a propriedade efetiva do ativo.

Assim, o chamamento público deixaria de ser um processo de cessão administrativa e passaria a ser um mecanismo de seleção do comprador-investidor, em linha com a lógica de projetos greenfield.


Entre as experiências internacionais, temos nos Estados Unidos o regulador ferroviário (Surface Transportation Board – STB), que prevê mecanismos como o Feeder Railroad Development Program e a Offer of Financial Assistance – OFA (antes da “consumação” do abandono ou descontinuação operacional da linha, um interessado pode subsidiar a operação por até um ano – renovável por acordo – ou comprar para uso ferroviário contínuo no qual o STB pode fixar termos e preço, além da alienação seguir leis estaduais de propriedade), onde são iniciativas federais criadas para evitar o abandono de linhas ferroviárias – que não são economicamente viáveis para grandes empresas ferroviárias de Classe I e Classe II, mas importantes na conexão de comunidades e na facilidade de transporte de mercadorias – e essas linhas desativadas só podem ser transferidas se vendidas ao novo operador. 


O objetivo é assegurar que o operador privado tenha plena propriedade ou direito real sobre a infraestrutura, realizando o transporte de maneira segura e eficiente, além de essas linhas ferroviárias continuarem cumprindo seu propósito de serviço contínuo.

No Canadá, o Canada Transportation Act estabelece que linhas em desuso devem ser primeiramente oferecidas para venda ou arrendamento de longo prazo a outras operadoras ou governos (federal/província/município/autoridades de transporte), garantindo que a operação privada se dê sobre infraestrutura de titularidade privada. 

O processo de descontinuação das linhas sob jurisdição federal abrange um plano trienal listando linhas a descontinuar; anúncio público para venda/arrendamento/transferência visando continuidade ferroviária; negociações em boa-fé. Se não houver acordo, oferta obrigatória aos governos por até o “valor de salvamento líquido”, com prazos escalonados (60+30+30+30 dias) e arbitragem pela agência em caso de discordância; e encerramento formal se ninguém aceitar.


Após esse processo, no que tange à reutilização, venda ou arrendamentos, temos as possibilidades de uso ao ativo ferroviário para trilhas, parques lineares e utilidades (após oferta a governos) que são frequentes; a venda, possível após cumprir o rito e se governos não exercerem a oferta; e arrendamentos/cessões, que são muito usados com entes públicos para conservar o corredor; preço referenciado ao valor residual líquido quando o adquirente é governo/autoridade. 


Esses modelos internacionais, especialmente Estados Unidos e Canadá, reforçam que regimes de autorização (no caso desses países, regimes privados) estão vinculados à infraestrutura privada, e não ao uso precário de bens públicos.

Concluindo, o chamamento público é um instrumento legítimo para estimular investimentos e dar destinação a trechos ferroviários. Contudo, sua aplicação deve respeitar a essência da autorização ferroviária – ser um regime totalmente privado, baseado na propriedade e no risco integral do investidor. Transformar o chamamento em uma outorga para operar infraestrutura pública tende a distorcer a lógica do modelo (aproximando-se mais de uma concessão do que autorização), podendo gerar insegurança jurídica, reduzir incentivos de manutenção e criar assimetria regulatória.

A solução adequada é que o chamamento selecione investidores que assumam plena propriedade ou direitos reais da infraestrutura, garantindo coerência regulatória, as seguranças técnico-jurídicas cabíveis e alinhamento com as melhores práticas internacionais.


*Urubatan Silva Tupinambá Filho é empregado público federal e profissional na área de ferrovias e transportes.


As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos

descritos no texto.


 
 
 

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